O pensamento positivo que paralisa

Como o pensamento positivo se infiltrou na carreira, nas empresas e na forma como adiamos as decisões mais importantes.

“Entendi o que você me propôs, mas não preciso de planos. Tenho fé que as coisas se ajeitam como devem ser.”

Foi o que me disse José (nome fictício), sentado à minha frente, no meu escritório. O espaço físico entre nós era pequeno, mas, ao ouvir aquela frase, um abismo se abriu. Não por desacordo — mas por algo mais profundo: percebi ali o travamento de um processo de mudança que, até então, ele dizia desejar.

Naquele momento, eu entendi que o problema dele não era falta de vontade.
Era algo mais profundo — e muito mais comum do que imaginamos.

Mas antes de chegar nesse ponto, deixa eu te contar como José chegou até aqui.

José era diretor em uma grande empresa há muitos anos e participou de um dos programas de liderança que conduzi por lá.

Algo do que eu disse naquele encontro bateu fundo. Não no lugar do convencimento, mas da inquietação. E alguns meses depois, ele me procurou para um processo individual de carreira.

Disse que queria repensar o caminho, reorganizar a vida e redesenhar o futuro com mais sentido. Estava cansado de só “responder às demandas”. Queria agir com mais intenção.

Apresentei como funcionaria o projeto — sessões, ferramentas, necessidade de envolvimento ativo. Ele topou. Seguimos.

Nas primeiras conversas, mapeamos possibilidades, riscos e o que ele estava disposto a renunciar para abrir espaço ao novo. Começamos a desenhar juntos — visualmente mesmo — diferentes cenários de vida e carreira, com ações, prazos, metas de curto e médio prazo.

Até que, diante de um esboço concreto, ele travou. E lançou a frase que abriu esse texto:

“Entendi o que você me propôs, mas não preciso de planos. Tenho fé que as coisas se ajeitam como devem ser.”

A positividade como armadilha

José não estava apenas hesitante. Ele estava imerso numa lógica muito mais profunda — uma lógica que, nos últimos anos, vem ganhando força: a do pensamento positivo como única resposta possível à vida.

Não estou falando aqui da disposição otimista que nos move — essa é saudável, bem-vinda e necessária.
Estou falando de uma exigência cultural que nos diz o tempo todo:
“Só depende de você. Pense positivo. Acredite. Não reclame. Seja grato. Mentalize.”

Há uma diferença entre nutrir esperança e se esconder atrás dela.
A primeira nos move. A segunda nos anestesia.

A escritora Barbara Ehrenreich, no livro Sorria - como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América, mostra como essa cultura da positividade se transformou em uma espécie de ideologia dominante, que encobre o sofrimento e esvazia a realidade de sua complexidade.


Tudo vira “falta de fé” ou “vibração errada”.
Ficar triste? Não pode. Estar cansada? Melhor não dizer. Ter dúvidas? Só se for em voz baixa.

O pensamento positivo se apresenta como libertador — mas funciona como um instrumento de controle social e subjetivo, que desloca a responsabilidade para o indivíduo e impede qualquer ação coletiva ou estrutural.

Essa crítica não é à fé — nem à espiritualidade — mas à ideia de que desejar com força já é suficiente.
É essa lógica que tem aprisionado muitas pessoas com boas intenções, mas pouca ação.

Quando o otimismo veste crachá

A positividade tóxica não está só nos livros de autoajuda com capas amarelas. Ela aparece, sorridente, nas práticas corporativas — e está muito mais presente do que parece.

  • Gestores que não se comprometem com feedbacks constantes, mas acreditam que uma única conversa anual vai “dar conta do desenvolvimento da equipe”.

  • Pessoas que vivem sobrecarregadas, mas se recusam a repensar sua agenda — e dizem que “no fim tudo dá certo”.

  • Reuniões longas, desorganizadas, sem pauta, que continuam acontecendo porque se acredita que “uma hora elas vão melhorar sozinhas”.

  • Empresas que evitam olhar para dados difíceis de engajamento ou adoecimento, apostando apenas em campanhas motivacionais de curto prazo.

  • Gestores que contratam coaching para um funcionário da equipe, mas ele mesmo não olha para seu “jeito” de fazer gestão.

Estudos recentes, como da Forbes (‘The Blind Side of Leadership: Toxic Positivity in Workplace Culture’) apontam que muitos líderes, mesmo bem-intencionados, mantêm uma cultura que exige positividade obrigatória, ignorando sinais de esgotamento.¹

Segundo artigo da SHRM (‘Identifying and Preventing Toxic Positivity in the Workplace’), essa positividade excessiva acaba diminuindo a honestidade e o bem-estar no trabalho.²”

Tudo isso é pensamento positivo fantasiado de gestão moderna.
E tudo isso produz inércia com cara de entusiasmo.

A fórmula da felicidade (e o problema que ela escancara)

A psicologia positiva chegou a reduzir a felicidade a uma equação que, à primeira vista, parece inofensiva — mas diz muito sobre o tempo em que vivemos:

F = L + C + V
(Felicidade = componente genético + condições de vida + fatores voluntários)

Segundo Martin Seligman, criador da fórmula, cerca de 50% da felicidade de uma pessoa estaria determinada pela hereditariedade (L), 10% pelas condições de vida (C) — como renda, saúde, moradia — e 40% pelos fatores voluntários (V), isto é, pela atitude da própria pessoa diante da vida: otimismo, gratidão, esforço emocional.

É claro que estudar o bem-estar é legítimo — e a psicologia tem muito a contribuir com isso.
O problema está em transformar isso em fórmula universal e despolitizada, como se felicidade fosse uma conta matemática que se resolve com boa vontade.

A minha primeira questão é: como medir com precisão algo tão subjetivo, culturalmente condicionado e estruturalmente atravessado como a felicidade?


Essa é uma das questões que Barbara Ehrenreich levanta no livro que mencionei acima, e que sugiro a você que leia (vale a pena). Quando questionado sobre a metodologia que embasa esses percentuais, o próprio Seligman desvia do assunto ou se esquiva de aprofundar.

Mas o problema maior está na mensagem que essa fórmula embute:
Se 90% da sua felicidade não dependem das suas condições reais de existência, então o sofrimento é, quase sempre, culpa sua. Olha lá na fórmula, apenas 10% segundo Seligman é o peso que a condição da vida de alguém tem sobre a tal felicidade.

É assim que se despolitiza o sofrimento.
Racismo, violência, burnout, desigualdade, desemprego, exploração no trabalho ou dificuldade de acesso à saúde e moradia seriam, nesse modelo, apenas 10% do problema. Será mesmo?

O restante?
Dependeria da sua “atitude diante da vida”.

É exatamente essa lógica — “elegante”, motivacional e aparentemente empoderadora — que naturaliza injustiças e silencia o sofrimento real de tanta gente.
E sim, é essa provavelmente a mesma lógica que atravessava José.

Três formas de pensar — e de se enganar (ou não)

Hoje, vejo com clareza o que estava diante de mim naquela conversa com José — e em tantas outras com líderes e profissionais nas empresas, é um jeito de pensar meio 8 ou 80, ou pensa positivo, ou acredita que não vai dar certo, um jeito rígido:

1. Pensamento positivo ilusório

“Vai dar certo.”
“Uma hora acontece.”
“O universo se encarrega.”
→ Esse pensamento nega a realidade e posterga decisões.
→ Alimenta esperança sem ação. É anestésico.

Não estamos sozinhos nessa percepção: autores e especialistas de RH têm alertado sobre os impactos reais da toxic positivity — silenciosa, porém presente.³

2. Pensamento negativo paralisante

“Nada vai funcionar.”
“Não tem jeito.”
“Se eu tentar, vou fracassar.”
→ Esse pensamento amplia a dor e sufoca a criatividade.
→ Impede qualquer tentativa. É paralisante.

Mas e que tal um pensamento realista com coragem existencial?

“A realidade é dura — mas eu posso escolher como responder a ela.”
→ Esse pensamento reconhece o contexto, sem romantizá-lo.
→ Exige presença, responsabilidade e movimento — mesmo sem garantias.

E não se trata de romantizar a resiliência ou exigir performance emocional.
Pensar com coragem existencial não é fazer tudo, o tempo todo.
É reconhecer o que é possível agora, diante do que se tem — mesmo que o passo seja pequeno.

E o José?

A lógica da fórmula vivia nele, ainda que ele nunca a tivesse ouvido.

José realmente acreditava que se desejasse com força, se mantivesse a “fé” e continuasse vibrando positividade, tudo se resolveria — sem que ele precisasse agir de fato.
Não por preguiça. Mas porque essa ideia de positividade virou um modo de interpretar o mundo.

Depois daquela frase e do silêncio que se seguiu, eu tentei mostrar com cuidado que o que estava travando seu plano de ação não era falta de competência ou de fé — mas uma crença ilusória de que desejar com força bastaria.

Usei exemplos reais, perguntei com delicadeza o que ele achava que poderia acontecer se nada mudasse. Ele ouviu. Pouco falou. Sorriu com certa tristeza.

Não houve grande virada.
Ele não saiu da sala pronto para agir.
Mas algo naquele encontro ficou.

Talvez ele ainda precise de tempo para sair do encanto da positividade exacerbada.
Talvez não saia.

Mas eu sigo acreditando que a lucidez, mesmo quando não gera movimento imediato, planta perguntas.
E algumas perguntas são como raízes — crescem por dentro, até um dia empurrarem a ação.

Para fechar (sem fechar a conversa)

✻ Se você sente que está esperando as coisas “se ajeitarem”, talvez valha se perguntar:

– O que estou deixando de fazer, confiando que o tempo vai resolver por mim?
– Em que momentos minha positividade virou fuga?
– O que a lucidez me mostraria, se eu tivesse coragem de escutá-la?

A lucidez, diferente do pessimismo, não nos paralisa.
Ela nos mostra por onde começar.

Notas que valem reforço

1. Não é uma crítica ao otimismo realista.
A disposição otimista pode ser uma força valiosa. A crítica aqui se dirige ao otimismo compulsório — aquele que exige que você sorria mesmo quando está à beira do colapso. Há diferença entre esperança e negação da realidade.

2. Não é uma crítica à fé ou à espiritualidade.
O texto não questiona crenças pessoais, mas sim o uso da “fé” como substituto da ação. A espiritualidade pode ser força de enfrentamento — desde que não seja usada para paralisar decisões concretas.

3. Não é um ataque à psicologia.
A psicologia é uma ciência importante. O que se critica aqui é a apropriação simplificada de seus conceitos — como a ideia de que a felicidade pode ser medida em porcentagens fixas ou controlada por esforço individual isolado.

4. Coragem existencial não é heroísmo.
Lucidez não exige força sobre-humana. Ela convida à honestidade. Às vezes, dar um passo pequeno e possível é mais transformador do que sustentar uma ilusão grandiosa.

5. Nem todo sofrimento é culpa sua.
Racismo, desigualdade, violência, sobrecarga estrutural e lógicas cruéis do trabalho afetam diretamente o bem-estar. Quando reduzimos tudo à atitude individual, silenciosamente estamos naturalizando injustiças.

Um abraço afetuoso e até a próxima.

Adri

Referências

Livros:

 Sorria - como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América - Barbara Ehrenreich

Happycracia - fabricando cidadão felizes - Edgar Cabanas e Eva Illouz

The Blind Side Of Leadership: Toxic Positivity In Workplace Culture — Forbes
Mostra como líderes bem-intencionados acabam criando culturas de negação da realidade, ignorando sofrimento e dificuldades com uma narrativa otimista superficial. Traz dados e exemplos corporativos.

Preventing Toxic Positivity In The Workplace — SHRM (Society for Human Resource Management)
Uma abordagem técnica e profunda sobre como o RH pode sem querer reforçar práticas que silenciam o desconforto e sufocam a escuta verdadeira.

Managers Are Glossing Over Workplace Issues And Pushing Toxic Positivity — Forbes
Artigo que denuncia como gestores evitam conflitos e sobrecarregam colaboradores com frases feitas e promessas vazias de bem-estar.

Is Your Company Suffering From Toxic Positivity? — Forbes
Reflete sobre o custo emocional e estrutural de ambientes corporativos onde a crítica é silenciada e só o “bom humor” é aceito.

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